![]() |
Os ndios (Jean Baptist Debret 1768) - Foto: Domnio Pblico |
Somos unnimes em itir que at pouco tempo o chamado 'descobrimento do Brasil' era algo pacificamente aceito por amplos setores da sociedade brasileira e que apenas de uns anos para c comeou a ser debatido e questionado. Como se explica que at h alguns anos essa viso oficial de Portugal tenha sido aceita? Podemos dizer que vrios fatores interferiram nesse processo: 5z1m5y
Falta de vozes profticas
O Brasil no teve vozes to vigorosas como a do dominicano espanhol Bartolom de Las Casas, que viveu em Santo Domingo e no Mxico, no sculo XVI, ou do jesuta peruano Antonio Ruiz de Montoya, que denunciou os massacres e a escravizao dos Guarani praticada pelos paulistas no sculo XVII. Tivemos sim, um padre Antnio Vieira (1608-1697), mas que foi mal resgatado pela histria do Brasil, sendo hoje lembrado mais como literato.
Outros jesutas se posicionaram contra a escravizao indgena e contra o modelo colonial, como Miguel Garcia e Gonalo Leite, mas foram, por isso mesmo, obrigados a retornar a Portugal, pois eram pessoas com 'excesso de escrpulos' (Leite, Hist. Da Comp. De Jesus no Brasil, 2:227-30). Hoje so totalmente esquecidos. Os jesutas conhecidos e consagrados pela histria oficial so os que defenderam o projeto colonial portugus, como Anchieta, Nbrega, Cardim e Simo de Vasconcelos.
A ausncia de uma elite colonial nativista e letrada
Esse foi um outro elemento que dificultou o surgimento de uma viso crtica. Esta carncia deveu-se no instalao de cursos superiores no Brasil e ao controle das publicaes aqui permitidas na poca colonial. Tanto o rei de Portugal quanto a pequena elite portuguesa que aqui vivia no tinham interesse em estimular a cultura no Brasil. O Brasil s foi conhecer cursos superiores no final da poca colonial, quando a famlia real se mudou para o Rio de Janeiro, em 1808. Quem desejasse estudar naquela poca tinha que ir para Coimbra. A expulso dos jesutas e de outras congregaes religiosas, em meados do sculo XVIII, s veio agravar a situao cultural da colnia.
Uma elite brasileira mais independente surgiu apenas no final do sculo XVIII, com estudantes que tiveram contato na Frana com ideais da revoluo sa ou norte-americana, como os intelectuais de Ouro Preto, da Inconfidncia Mineira, ou os irmos Andrada, que exerceram importante papel na luta pela independncia. Dentro desse quadro de atraso cultural, no se pode esquecer a nefasta atuao do Santo Ofcio, isto , da Inquisio, que censurava e controlava toda publicao em Portugal e nas colnias.
Um livro para ser impresso precisava ar por trs a quatro censores, como foi o caso de O etope resgatado, de 1758 (Vozes, 1992), de autoria do padre baiano Manoel Ribeiro da Rocha, sobre a libertao dos escravos. Livros e jornais eram terminantemente proibidos de serem impressos no Brasil. O mximo que se tolerava era a publicao de manuais de orao ou estatutos de confrarias.
O surgimento de uma elite colonial inferiorizada
Nesse contexto no de se irar que tenha surgido no Brasil colonial uma elite envergonhada, complexada, que introjetava a viso colonial da superioridade portuguesa e assumia a condio inferior de colonizado. Era o mazombo, assim pejorativamente chamado. Importantes figuras da poca desprezavam a cultura local, como Gregrio de Matos, talvez o maior representante da literatura brasileira no sculo XVII. Poeta satrico, escarnecia dos nativos, sobretudo da nascente cultura mestia, to marcada pelo elemento indgena.
A presso social durou muito tempo, como notou o ingls John Luccock, ao descrever a vida social do Rio de Janeiro, no incio do sculo XIX: 'Nas peas que representavam, ridicularizavam-se as manias, vcios, dialetos e outras peculiaridades da colnia, o que corrigiu os gostos do pblico' (Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Itatiaia/Edusp, 1975[1821]: 163) Apesar desse tempo estar longe, herdamos muita coisa desse ado, como se v em algumas expresses brasileiras, que denotam inferioridade: canrio da terra (de penas amarelo-escuras), em contraposio ao canrio do reino (delicado e de penas de um amarelo bem claro) ou a banana da terra (banana nativa, rstica e que s serve para fritar).
Ainda hoje essa viso preconceituosa contra o nativo perdura, como o adjetivo tupiniquim, que vai significar o degenerado, o inferior, como a expresso 'democracia tupinikim'. O mesmo se pode dizer do vocbulo botocudo, infelizmente usado h pouco at por nosso presidente da Repblica, ou os vocbulos caipira, bugre (ndio), com forte conotao pejorativa. Alm desse etnocentrismo portugus, fomos influenciados tambm pelos povos de cultura tupi, que foi o substrato da elite mestia, que nos legaram essa tendncia de abertura ao novo, ao estrangeiro, desvalorizando o que da terra.
Frente ao outro, os povos Tupi tiveram duas posturas: a de irao e endeusamento para com o diferente distante (que poderia ser aliado); e de discriminao e preconceito para com o diferente prximo (que poderia ser inimigo). O diferente distante foi acolhido como deus nos primeiros anos da conquista. Os portugueses receberam o nome de karaba, que significava 'coisa santa', gente com grandes poderes (cf. Anchieta, [1584], Cartas, escritos... 1933:332); e os ses foram chamados de mara ou mar, um dos maiores demiurgos da mitologia tupi (id. ib.).Ao o que o diferente prximo era inimigo e devia ser combatido. Da os nomes de Tobajara (inimigo) ou Tapuia (atrasado).
Uma historiografia brasileira eurocntrica
Quando o Brasil comeou o processo de emancipao cultural, durante o imprio, seus grandes historiadores, como Varnhagen, tinham uma formao europia, com uma viso muito preconceituosa contra os povos indgenas. No sem razo escreveu: 'Para fazermos melhor idia da mudana ocasionada pelo influxo do cristianismo e da civilizao, procuramos dar uma notcia mais especificada da situao em que foram encontradas as gentes que habitavam o Brasil: isto , uma idia de seu estado, no podemos dizer de civilizao, mas de barbrie e de atraso.
De tais povos na infncia no h histria: h etnografia' (Hist. Geral Brasil, S. Paulo, [1854]1956, 1:30. Grifo nosso). Isto marcou toda a historiografia brasileira, que at h pouco afirmava que os povos indgenas no eram o objeto da Histria e sim da Etnografia. Como conseqncia, nossa histria comeava na Europa, especificamente em Portugal, e no no Brasil. Os povos indgenas surgiam de relance no sculo XVI, desaparecendo em seguida.
As novas geraes brasileiras, marcadas por regimes autoritrios, como o de Vargas, e mais recentemente o dos militares, aram a cultuar anti-heris, como os bandeirantes paulistas, o Duque de Caxias e tantos outros.
O nativismo romntico
No campo da literatura, se o nativismo do sculo XIX veio reafirmar nossas razes nativas, tentando quebrar as amarras culturais com a metrpole, trouxe consigo muitas ambigidades que reforavam ainda os padres europeus.
Surge o ndio genrico, como o fizeram o poeta Gonalves Dias, o romancista Jos de Alencar ou o msico Carlos Gomes. Seus personagens, embora vestidos de pena, tinham a cabea do conquistador, sendo os grandes aliados dos portugueses. O bom ndio era o 'indgena colaborador', aquele que participou da conquista do Brasil e o que mais se aproximava dos padres ditos 'civilizados'.
Assim o Brasil-colnia viveu cerca de 400 anos voltado para a Europa e de costas para suas origens. As revoltas nativistas e a grande presena indgena em vrias regies fizeram com que aos poucos os brasileiros comeassem a sentir que algo se ava. Sem resolver muitos problemas de identidade, por muito tempo vivemos uma espcie de esquizofrenia cultural, sentindo que ramos mestios, mas mantendo um discurso e uma referncia estrangeira. Somente agora, no final do sculo, por conta do movimento negro e indgena, o povo brasileiro est conseguindo quebrar os laos ideolgicos que por tanto tempo nos impam essa viso do imprio portugus.
Crditos:
CIMI - Conselho indigenista Missionrio
Por: Benedito Prezia